A grande vantagem do computador é que ele nos dá tamanha liberdade. Tudo aceita. Escrevemos, aliás, digitamos, e apagamos conforme nos convém. Assim é tudo muito bom; posso borboletear, florear, viajar na maionese e escorregar nela, pra depois deletar tudo num simples apertar de botões, quase sem deixar rastros.
Justamente a respeito desta liberdade é que hoje estou a fim de falar. Para minha filhinha Stella Maya, fazendo um aparte, essa expressão “afinde” é uma palavra só. Ela tem a liberdade de pensar... Assim também nós outros que, conforme me parece, a cada dia poderemos gastar mais fosfato e colocar menos a mão na massa... Liberdade paradoxal de um corpo por vezes aprisionado, não é engraçado? Fiquei pensando na liberdade de escolha, inclusive profissional, que este adoecimento me trouxe. Sabem tudo aquilo que queriam e esperavam de nós? Aquelas expectativas a que tanto fizemos por corresponder? Talvez agora eu dê uma boa revisada em tudo isso. Quais seriam mesmo os meus interesses, meus dons, minha motivação? Perdi pelo caminho? Se perdi, poderei resgatá-los? Até então, satisfiz os desejos do outro, inesgotáveis, ou os meus - e até que ponto? E ainda, qual o equilíbrio entre um e outro?
Só sei que posso escolher. Das pedras do caminho, fazer calçamento. Artisticamente. Não sem esforço, naturalmente, mas trabalhar é bom, muito bom mesmo. Há trabalhos que são solitários e não há outro modo. Trabalho de re-des-cobrir-se: olha só que palavra interessante; quer dizer que a gente já se cobriu uma vez, depois se des/cobriu, depois descobriu de novo? Quem foi que descobriu o Brasil? Vicente Yànez Pinzón.
Trabalho de saber se entregar, mas sem entregar os pontos; um verdadeiro “serviço de entrega”... Quer exercício mais vigoroso? Miastênico também pode fazer. Enxergar através da cegueira funcional, pra que ela não se torne uma cegueira vivencial, por mais tapa-olhos que usemos. Não somos tapados, e nossos olhos são muito mais do que essas duas janelinhas uma ao lado da outra, as duas um pouco acima do nariz.
O que vejo é que ter desejos, fazer planos, construir projetos, me parece fundamental. O fundamento mesmo da vida. O que acontece comigo não é uma realidade que se interpõe entre mim e a vida: é a própria vida, a me brindar com mais este desafio e esperar pra ver de camarote o que faremos com ela. Por isso quero rir de mim mesma. Quero ir por mim mesma, mesmo que tenha que ser levada. Dar o breque em minha cadeira de rodas quando bem me aprouver – ser “levada da breca”.
Já que tenho que aprender a mandar, mesmo sem querer fazê-lo... Aprender a pedir também. Coisa difííícil!! Não é à toa que dizem que é quem serve o que está em melhores condições. Não poucas vezes precisamos ser servidos... Que fazer, então, a não ser aceitar a ajuda, “numa nice”,
aprender a ser ajudada, e ajudar quem me ajuda? Com as mãos abertas, o mundo tanto entra quanto sai. Abertos à vida, “como uma onda no mar”, no movimento de ir e vir, do “for-da”, do pro-criar, criar construindo a nosso favor.
Não estou aposentada. Me encontro, porém, mais em meus aposentos do que em qualquer outro
lugar... E assim, mesmo assim, a gente vai se fazendo conhecido de novos relacionamentos. Tem gente que já me conheceu assim: adoentada, gordinha, careca. Agora o cabelo já está nascendo de novo. A única coisa fixa e certa mesmo na vida é a mudança. E apesar dela, ou delas, eu continuo sendo eu, Paulinha, por mais que o espelho às vezes não me reconheça. É só fechar os olhos e olhar. Mais crescida, mais madura... Nem tão forte, porém mais forte... Incongruência??
Quero o trabalho solidário, e viver o amor em todas as suas formas. Tinha uma avó que se chamava Stella. Se entregava ao Pai, e vivia pra amar. Ah, se um dia eu chegasse ao menos perto dos pezinhos dela!!...Tinha os pezinhos de bolinha, de tão inchadinhos. Meu exemplo de vida, e também meu pai, que se aposentou, fez concurso pra receita federal, começou a trabalhar outra vez, e quando se aposentar de novo vai construir casa em Ipatinga, fazer vestibular pra Direito e estudar, tudo de novo, a vida um eterno recomeço de novos projetos que ele escreve no papel – em que ano vai viajar, e pra onde; em que ano vai construir. Sempre namorando a minha mãe, indo ao cinema, levando chá ou whisky na cama, mãozinhas dadas, beijinhos, telefonemas. Outro dia lhe disseram que minha mãe estaria “acabando” com ele, dados os cabelinhos brancos e a careca farta; respondeu que era ela a razão pela qual ele ainda tinha alguns fios de cabelo pretos!...Lição de vida.
O que escrever depois de escrever tanto? Ô Lídia, “lírica”, quando é que poderemos escrever para o “jornalzinho virtual da Associação dos Miastênicos do Brasil”? Deve ter muito “jornalista”
por aí, aguardando... Sou jornaleira pra vender a idéia.
Na falta do que fazer, fiz mais um texto. Que ninguém precisa ler, mas já está no final. E deixa a maré trazer e levar as riquezas da vida. Células-tronco. Auto-transplante. Esperança. Pés-no-chão.
Paulinha.
10/03/05
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