Faço parte de uma minoria privilegiadíssima que pode ter à mão um plano de saúde que atenda às necessidades da saúde – esta última nem sempre presente conforme se gostaria – a tempo e a hora. Ali nos conhecem pelo nome, e querem saber de nós. Até então, liberaram-se consultas, exames, internações, CTI, imunoglobulinas, aluguel de aparelhos para ventilação-não-invasiva, plasmaférese, cirurgia, etc, com ética, responsabilidade e uma agilidade de se admirar e agradecer com as mãos para os céus. Chegaríamos a estranhar o quanto destoa da realidade atual dos planos de saúde no Brasil, não fosse este o modo adequado de se conduzir de acordo com o que dita a verdadeira Medicina, hoje esquecida nos corredores de leitos-chão, na corrupção da política e nas pilhas que se acumulam de não caber mais papéis a emburrecer (e endoidecer) até mesmo os que se achava mais capazes e idôneos no começo do caminho. Onde o idealismo, a garra das lutas dos DAs, a crença no sacerdócio?
Quando estudei Semiologia, nosso professor nos acompanhava do ambulatório da escola até à Santa Casa, onde selecionava e nos indicava a cada um 5 ou 6 pacientes para que nos virássemos a colher a anamnese, o exame, o raciocínio que não sabíamos fazer e os produzíssemos em um caderno brochurão que ele mais tarde corrigiria como se fosse o primário. Na verdade ele foi o primeiro, e primoroso pelo desejo de que aprendêssemos o que queria inaugurar em nós; por meus colegas não sei nem posso dizer, mas sei o que em mim se inaugurou, e se reinaugura até hoje, e me faz indignar até quase adoecer com o que se vê no real, imediatamente comparado ao que se tinha imaginado a princípio ou por princípio. Claro é que tudo isto a gente vai reformulando, e de novo, conforme as possibilidades, “sem perder a ternura” e sem deixar de acreditar que tudo ainda pode ser melhor. A gente se adapta, que é pra não morrer ou não deixar morrer o que de melhor a gente tem.
Nos últimos meses já me tratei a valer. Virei paciente, troquei de lado na relação. E, verdadeiramente, me porto como tal. É deste lugar que tenho “acompanhado” profissionais, em formação - e às vezes até não - em um hospital muito bem conceituado e sério a não fazerem a tal da anamnese, um exame físico, um contato do olhar, um raciocínio clínico, uma pesquisa de prontuário ou da literatura, tudo em prol de uma prescrição quase automática e uma pedição de exames sem fim, fiados em uma tecnologia prometida por aparelhos cada vez mais modernos, sempre da última geração e em uma indústria farmacêutica voraz e avassaladora, pra não ter que usar outros adjetivos menos dignos. Muitos exames, não sem uma burra burocracia, os planos de saúde “cobrem”, substituindo a semiologia obsoleta e dando o pontapé inicial aos raciocínios e tratamentos que se há de fazer. Fazer o quê?
Mas na verdade não é nada disso que queria falar. O que quero contar mesmo é dos ovos.
Pois bem.
Fiz a tal da plasmaférese, tão temida e de todas as formas imaginada. Melhorei um bocadinho da minha fraqueza, e na próxima semana já vou até operar, fiados na melhora vislumbrada por tempo suficiente pra me recuperar da cirurgia.
Com o meu plasma, depois da aférese, foram também minhas proteínas embora, então fiquei inchada de verdade, e o pulmão reclamou com um pouco de falta de ar por causa da congestão. A médica foi logo de cara dizendo:
-Ainda hoje coma dois ovos, que é pra repor a proteína e o edema melhorar, assim a respiração também.
Podia ser cinco e meia da tarde. A enfermagem pede na copa os tais dos ovos. Lá pelas oito, depois da troca de plantão e nada dos mesmos, lá vamos nós reclamá-los, ao que nos respondem:
-A copa mandou dizer que os ovos que a senhora estava querendo, não vai ser possível trazer hoje...
Até que se explique que “os ovos que eu estava querendo” eram para medicar a minha falta de ar (além do diurético, é claro) e que gato não era lebre, tudo foi parar na supervisora do andar, que meu pai de passagem ouviu dizer ao telefone:
-Eu não vou comprar dois ovos! Não tem ovos?? Nem que eu tenha que arrombar a porta pra pegá-los!...
Mais eu não sei, sei que o tempo ficou quente e que às 22:00 me aparece no quarto do hospital o cozinheiro, com o chapéu que lhe haveria de ser peculiar e tudo, não fosse o inusitado da hora, a me perguntar:
-Como a senhora vai querer os ovos?
A esta altura chegava meu pai, que já tinha ido ao trailer de sanduíches da frente, onde não se cozinhava ovos, só os faziam na chapa, carregando num saquinho de papel pardo dois ovos crus – que no dia seguinte quiseram virar ovos quentes de café da manhã debaixo da água da torneira da caldeira do hospital, mas não conseguiram e continuaram cruzinhos como vieram ao mundo, só que desta vez sem casca.
No frigir dos ovos, em 3 ou 4 dias comi 15 deles, mais os dois que o cozinheiro levou, e sem enjoar (cozidos – menos ou mais – no caneco com ebulidor que minha mãe providenciou no dia seguinte, junto com uma dúzia daqueles vermelhinhos). Fim de contas, me mandavam dois branquinhos cozidos no almoço, além do alimento que já vinha de praxe, e mais vitaminas e suplementos protéicos a repor o que a plasmaférese
tirou.
Repus também a imunoglobulina perdida, vim passar em casa a semana santa, que é pra matar a saudade da minha filha e me preparar para a timectomia vindoura (próximo capítulo, sempre acreditando no melhor).
Mas este capítulo tinha que ser à parte, que é pra ver se os planos de saúde passam a cobrir os ovos da gente.
Paulinha.
24/03/05
Nenhum comentário:
Postar um comentário