sexta-feira, 7 de março de 2025

A CADEIRA AZUL

Lá estava ela, pra quem tivesse olhos de ver. De enxergar, na verdade; mesma diferença entre ouvir e escutar. Quando você escuta, você enxerga a pessoa, coloca-se no lugar dela, tem compaixão. E olha que eu e minha ‘rimã’ temos, cada uma, um probleminha diferente em olhos contrários.

Mas vimos, enxergamos. No meio do caos, uma cadeira azul. Simples, singela, novinha, de um turquesa delicado, cheia de furinhos, aparentemente confortável, um encanto. Demos uma ré para admirá-la por mais um segundo.

Dali, passamos a refletir sobre a beleza que não desvelamos, que não descobrimos nem saboreamos. Há beleza a ser revelada em qualquer canto, por mais caótico, triste, mal apanhado que seja.

Assim, com as mais variadas e inusitadas circunstâncias da vida. Com o imprevisível e as inevitáveis mudanças.

Já houve épocas em que estive com o estado de saúde bem grave, no entanto, muito bem humorada. Até meio que discrepante de tudo. Pouca gente entendia. Escrevi textos em que falava de fé e da importância de entender a dificuldade da vida sob uma outra ótica. Débora, minha madrinha, certa vez me acompanhou ao PA porque eu sentia uma dor abdominal, ao que ela me sussurrou: “Paula, pelo menos faz cara de dor, senão ninguém vai acreditar no que você está sentindo...” Sou assim.

Quando da adolescência dei muito trabalho e preocupações. Engraçado, só quando a gente se torna mãe é que entende os nossos pais. E muitas vezes, também, só com o passar do tempo passamos a compreender eventos passados. 

Em 1996 tive um companheiro cujo primo era psiquiatra, com o qual fui me consultar e saí, ao final do atendimento, com o diagnóstico de “psicose maníaco depressiva”, hoje conhecido como “transtorno bipolar”.  Fiz uso de vários psicotrópricos à época, inclusive neurolépticos, antipsicóticos, antidepressivos, todos com muitos efeitos colaterais, até que fui encaminhada a outro profissional que discordou daquela hipótese diagnóstica e passou a me tratar de uma depressão, tanto com medicação como com psicoterapia. É verdade, já tive depressões homéricas.

No entanto agora, decorridos muitos anos e sendo acompanhada por outro profissional indicado por este último, voltamos ao diagnóstico inicial: ‘transtorno bipolar tipo II’, aquele em que o paciente não apresenta um quadro de mania franca mas, sim, sintomas de hipomania: o humor permanece eufórico, mas não de forma intensa, o pensamento acelerado até o ponto de não se conseguir dormir ou parar de pensar demais. Acrescente-se sinais expressivos de TOC (transtorno obsessivo compulsivo), em que os objetos têm que ter distância certa uns dos outros, ordem certa, lugares certos, tudo etiquetado etc. E muita mania, pra não deixar de perder o chiste. 

Desde então, passamos a reinterpretar os sintomas da adolescência, mais intensos que os típicos dessa fase em geral e inclusive os quadros depressivos anteriores. Além do meu humor incongruente durante uma dura fase da vida.

Ao comunicar este diagnóstico com o Paulo Roberto, meu neurologista que me acompanha desde o início do tratamento, ouvi um sonoro “faz sentido!”. Só rindo!

Este tipo de informação não se sai compartilhando por aí, tal como faço agora. Os transtornos mentais ainda são tratados com muito estigma e muito se repete – ou se pensa – “esta pessoa é louca.” Nada disso! Podemos até não ser normais, mas visto de perto, quem o é? Talvez o normal seja não ser normal, não é mesmo?

Parafraseando meu pai, “cada um é cada qual e deve ser tratado consoante”. Nada mais verdadeiro, somos únicos e ricos, ímpares, diversos e dignos de respeito, incentivo, assim como de críticas amorosas, elogios e tudo o mais.

Do meu ponto de vista, há no mínimo dois ângulos sob os quais enxergar o passado: o primeiro, a vantagem de ter podido enfrentar aquela fase sem muito sofrimento interno, o que teria me ajudado e ao mesmo tempo ajudado quem cuidava de mim, tornando tudo um pouco mais fácil; por outro lado, onde o pé no chão? A consciência da gravidade etc.?

Um ano e três meses depois, voltei para casa ainda acamada e passei a tentar compensar, inconscientemente, o tempo perdido com atitudes bastante equivocadas. Contraí o mal hábito de fazer compras supérfluas, desnecessárias, dispensáveis e que se transformaram numa compulsão de comprar objetos mal escolhidos com urgência, sem distinção, baratos, de má qualidade e que me renderam, por incrível que pareça, de blusinha em blusinha, de chinelinho em chinelinho, uma dívida equivalente ao valor do meu apartamento calculado pelo IPTU ou ainda mais. Traziam um alívio imediato e problemas inenarráveis logo após.

Hoje, com medicação, muita psicoterapia e esforço, ainda com algumas recaídas, pago empréstimos a perder de vista e conto com a ajuda inestimável da família, não apenas ajuda de custo, mas também puxões de orelha e colocação de limites, imprescindíveis. Tiro o chapéu para o meu pai pela mudança de posição de quem sempre me passou a mão na cabeça para uma atitude mais firme e de coragem a me dizer: “se vira!”

Quando há várias pessoas assentadas em um sofá, se uma se move, todas as outras têm que readaptar a própria posição e assim é. Aos poucos vou me readaptando, com a ajuda de todos, incluindo a Stella, que se senta comigo a reestudar o orçamento mensal para cortar todos os gastos possíveis, de modo que possam caber dentro de uma receita mensal limitada. Tarefa nada fácil. Mas possível, custei a me convencer. Sem desculpas ou subterfúgios.

Repetindo o termo utilizado, tiro o chapéu para o Rogério, primo querido e meu médico também desde o início da miastenia, que há pouco passou a não atender meus telefonemas e mensagens excessivos, deflagrados por uma ansiedade incontida e incontrolável e contrários à minha própria vontade. Diante desta reação, fui obrigada a me deslocar daquele lugar e paulatinamente (para não perder a oportunidade de usar meu nome), construir um outro, o que ainda estou tentando, a muito custo. Minha mãe disse a ele: “a Paula está tentando falar com você”, ao que ele respondeu: “é, estou dando um tempo mesmo!”. Peço desculpas, Rogério e equipe.

Retomando o fio anterior, consegui, ainda, ter o insight do quanto eu mesma passei sempre a mão na cabeça da minha filha, a mimá-la e tentar compensá-la por um tempo supostamente perdido em que não pude estar muito presente. Graças a Deus, lidamos com a mudança diariamente, estando ou não abertos a ela. Que estejamos! Amadurecemos as duas; todos, na verdade, e todos os dias.

Nada como o amor e o diálogo. E as entrelinhas também.

Voltando à vaca fria (pensaram que havia me perdido, não é mesmo?), hoje me preparo para um transplante de medula óssea, de mim para mim mesma, autólogo. Quadro grave, solução meio que radical, mas a possível. E volto a romantizar, naquela tentativa inconsciente de fugir ao real, a colocar os pés no chão. Romantizar é bom, mas ao mesmo tempo não é. Em meio a muita ansiedade e medo, encontro-me de certa forma eufórica, hipomaníaca, acelerada, medicada para ambas as condições e com psicoterapia para o enfrentamento de toda esta situação. 

Tal como meu pai, sou uma otimista inveterada. Ele, no entanto, é mais sensato e nada bipolar.

Sigo com as vantagens e desvantagens de minha condição, aceitando e assumindo suas consequências, com as quais, querendo ou não, tenho que lidar. Melhor querer, facilita para todos nós.

Não deixo de pensar, entretanto e ainda, que uma leve euforia me dá olhos para enxergar uma cadeira azul no meio do caos e as estrelas que estão lá em cima, no céu; a contrapartida é que é perigosa. Tudo tem um meio termo, até o café que se faz lá em casa que, segundo um amigo, não é forte nem fraco, é “meio termo”.

Sigamos, nas palavras do Murilo, “criando uma nova experiência, um dia de cada vez, força, coragem, determinação, fé, para abandonar o velho e experimentar o novo, porém regidos pelo Eterno e Imutável”.

Vamos em frente!


Paula Mendes

21/04/2024

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