"Eu não tenho religião. Não
vou a igrejas, não participo de rituais, não acredito nos seus dogmas. Preciso
não ter religião para amar a Deus sem medo, com alegria e, principalmente, sem
nada pedir. Não tenho religião porque não concordo com as coisas que elas dizem
de Deus. Deus é um Grande Mistério. Está além das palavras. Diante do Grande
Mistério a gente emudece. Fica em silêncio. Discordo a partir do pronome “ele”. Deus “ele”, masculino? Onde
foi que aprenderam sobre o sexo de Deus? Deus tem sexo? Se tem sexo, por que
não ela, Deus mulher? Como a mulher do Cântico dos Cânticos? A Igreja Católica
não conhece a mulher... Conhece apenas a 'mãe' que foi mãe sem ter sido mulher.
Deus: por que não uma flor, a mais perfumada? Por que não um mar sem fim onde a
vida navega? Místicos houve que disseram que Deus é uma criança que nos convida
a brincar... Mas pode ser também que Deus seja música, como pensaram os
místicos pitagóricos.
Ter uma religião é falar as
palavras sagradas daquela religião e acreditar nelas. As religiões se
distinguem e se separam: pelas diferenças das palavras que usam para se referir
ao sagrado. Se elas nada falassem, se houvesse apenas o silêncio diante do
Grande Mistério, a Babel das religiões não existiria. Diante do Grande Mistério
apenas uma palavra é permitida, a palavra poética, porque a poesia não o diz
mas apenas aponta para ele. O Grande Mistério está além das palavras.
Se tenho uma religião ela se
chama poesia. Por isso, amo a Cecília Meireles, sacerdotisa profana, que quando
queria se referir a Deus falava sobre um mar sem fim, misterioso e selvagem.
Quem em silêncio contempla o mar sem fim ouve vozes em meio ao barulho das
ondas. Também Fernando Pessoa sabia disso. Mas, prestando bem atenção, é
possível ver, a voar sobre o mar sem fim, um pequeno pássaro que canta:
Leve é o pássaro:
e a sua sombra voante,
mais leve.
E a cascata aérea de sua
garganta,
mais leve. E o que lembra, ouvindo-se
deslizar seu canto, mais
leve...
Os poetas escrevem em transe:
não sabem sobre que estão escrevendo. Faz muitos anos, escrevi um livro para
minha filha. Ela tinha 4 anos. Eu iria fazer uma demorada viagem pelo exterior
e ela ficou com medo de que eu morresse e não voltasse. Apareceu-me, então, uma
estória, A menina e o pássaro encantado.
Resumida, era assim...
“Era uma vez uma menina que
amava um pássaro encantado que sempre a visitava e lhe contava estórias, o
pássaro a fazia imensamente feliz. Mas sempre chegava um momento quando o
pássaro dizia: ‘Tenho de ir’. A menina chorava porque amava o pássaro e não
queria que ele partisse. ‘Menina’, disse-lhe o pássaro, ‘aprenda o que vou lhe
ensinar: eu só sou encantado por causa da ausência. É na ausência que a saudade
vive. E a saudade é um perfume que torna encantados a todos os que o sentem.
Quem tem saudades está amando. Tenho de partir para que a saudade exista e para
que eu continue a amá-la, e você continue a me amar...’ E partia. A menina,
sofrendo a dor da saudade, maquinou um plano: quando o pássaro voltou e lhe
contou estórias e foi dormir, ela o prendeu numa gaiola de prata dizendo: ‘Agora
ele será meu para sempre’.
Mas não foi isso que aconteceu. O pássaro, sem poder voar, perdeu as cores, perdeu o brilho, perdeu a alegria, não mais tinha estórias para contar. E o amor acabou. Levou tempo para que a menina percebesse que ela não amava aquele pássaro engaiolado. O pássaro que ela amava era o pássaro que voava livre e voltava quando queria. E ela soltou o pássaro que voou para longe”.
Mas não foi isso que aconteceu. O pássaro, sem poder voar, perdeu as cores, perdeu o brilho, perdeu a alegria, não mais tinha estórias para contar. E o amor acabou. Levou tempo para que a menina percebesse que ela não amava aquele pássaro engaiolado. O pássaro que ela amava era o pássaro que voava livre e voltava quando queria. E ela soltou o pássaro que voou para longe”.
A estória termina na ausência
do pássaro e a menina se enfeitando para a sua volta. Minha intenção, ao
escrever esta estória, era simples: consolar a minha filha. Mas quando foi
publicada ganhou um sentido que não estava nas minhas intenções: começou a ser
usada em terapia, com casais possuídos pela ilusão de que, engaiolado, o amor
seria posse eterna... Desde então passei a presentear noivos com uma gaiola da
qual eu arrancava a porta... Mas, passado algum tempo, uma pessoa me disse: “Que
linda estória você escreveu sobre Deus!” “Sobre Deus?”, eu perguntei sem
entender. “Sim”, ela me respondeu. “O Pássaro Encantado não é Deus? E as
gaiolas não são as religiões nas quais os homens tentam aprisioná-lo?” Aprendi,
então, da minha própria estória, algo que não sabia: Deus como um Pássaro
Encantado que me conta estórias. Amo o Pássaro. Odeio as gaiolas.
O Pássaro Encantado não pousa
em galhos para cantar. Não é possível fotografá-lo. Canta enquanto voa. Dele, o
que temos é apenas a sua leve sombra voante e a cascata aérea de sua
garganta... Quando ouço o seu canto, ele já passou. Só é possível vê-lo em seu voo,
por trás. Vai-se o Pássaro. Fica a memória do seu canto.
Um pássaro voando é um
pássaro livre. Não serve para nada. Impossível manipulá-lo, usá-lo,
controlá-lo. Pássaro inútil. E esse é, precisamente, o seu segredo: a sua
inutilidade – ele está além das maquinações dos homens. Sua única dádiva é o
seu canto. Só faz um milagre, um único milagre: quando, chorando, lhe peço: “Passa
de mim esse cálice”, ele canta e o seu canto transforma a minha tristeza em
beleza. Por isso eu nada lhe peço. Sei que ele não atende a pedidos. O seu
canto me basta: ao ouvi-lo transformo-me em pássaro. E voo com ele...
Mas aí vêm os homens com as
suas arapucas e gaiolas chamadas religiões. E cada uma delas diz haver
conseguido prender o Pássaro Encantado em gaiolas de palavras, de pedra, de
ritos e magia. E cada uma delas afirma que o seu pássaro engaiolado é o único
Pássaro Encantado verdadeiro...
Por que prenderam o Pássaro?
Porque o seu canto não lhes bastava. Não lhes bastava a beleza. Na verdade, não
o amavam. O que os homens desejam não é a beleza de Deus. O que eles desejam é
manipular o seu poder. O que eles querem é o milagre. O canto do pássaro
poderia lhes dar asas para voar. Mas não é isso que querem. O que desejam é o
poder do pássaro para continuar a rastejar: Deus, transformado em ferramenta. Ferramenta
é um objeto que se usa para se atingir um fim desejado. Assim são os martelos,
as tesouras, as panelas... O que as religiões desejam é transformar Deus em uma
ferramenta a mais. A mais poderosa de todas. A ferramenta que realiza os
desejos. Como o gênio da garrafa. Pois não é isso que é o milagre, a realização
de um desejo por meio da manipulação do sagrado? Só é canonizada santa uma
pessoa que realizou milagres: o milagre é o atestado do seu poder para
manipular o divino.
E é assim que as religiões se
multiplicam, porque os desejos dos homens não têm fim, e os seus santuários se
enchem de santos de todos os tipos, os santos milagreiros são nossos
despachantes espirituais, todos eles a serviço dos nossos desejos, atenderão
nossos desejos a preço módico, se rezarmos a reza certa e prometermos publicar
o milagre em jornal, e pela televisão se anunciam fórmulas, sessões de
descarrego, águas bentas milagrosas, exorcismo de demônios, os DJs de cada
religião têm uma música na fala que lhes é própria...
Assim, a poesia do canto do
Pássaro Encantado se transforma em manipulação do pássaro engaiolado. E não
percebem que aquele pássaro que têm dentro de suas gaiolas não é o Pássaro
Encantado, que não se deixa engaiolar, porque é como o vento, e voa como quer,
e tem uma única dádiva a oferecer aos homens: a beleza do seu canto.
Rubem Alves
Amei o texto e as comparações. Frei Claudio uma vez falou q Deus não pode nos ajudar e não podemos controla-Lo, usá- Lo. Exatamente como foi dito no texto. Será q só pessoas mto especiais conseguem viver essa realidade? Rejane
ResponderExcluirFrei Cláudio é muito especial!!
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