terça-feira, 8 de março de 2022

A noite dos jardineiros





"Há muitos anos, quando ainda trabalhava como jornalista, visitei uma pequena localidade chamada Andulo, no sul de Angola, ocupada pela guerrilha. A cidade onde nasci, Huambo, não fica muito distante. Alguns dos guerrilheiros haviam sido alunos da minha mãe. Outros conheciam os meus primos. Queriam saber como era a vida em Luanda, onde eu vivia. Estavam interessados sobretudo em conhecer os últimos sucessos musicais. Eu queria saber como estava o Huambo, após ter sido cruelmente bombardeado durante 55 dias pela aviação governamental.

No meio da conversa, alguém mencionou o caso de um jardineiro que todos os dias, durante o período em que decorreram os bombardeamentos, saía de casa para trabalhar na Estufa Fria, jardim botânico que era, desde a época colonial, um dos locais emblemáticos da cidade. Pareceu-me que poderia dar uma matéria interessante e perguntei se seria possível falar com o homem. Dois dias depois trouxeram à minha presença um sujeito magro, tímido, com óculos de lentes grossas, que parecia muito frágil frente à bruta escuridão daqueles dias. Cumprimentei-o. Quis saber por que arriscara a vida para ir trabalhar, enquanto as outras pessoas se escondiam em bunkers improvisados, debaixo dos escombros das casas onde antes tinham vivido. Olhou-me espantado, como se a minha pergunta não fizesse sentido algum: “Não havia mais ninguém para tratar das flores.” —disse-me. —“Se eu não fosse trabalhar, as plantas todas teriam morrido.” Não sei o que aconteceu ao jardineiro, mas lembro-me dele sempre que os dias escurecem. Quase todos os grandes heróis que conheci eram pessoas comuns. Os monstros também. Pessoas comuns tendem a revelar sua verdadeira alma — heroica ou monstruosa — naqueles momentos em que o Estado se distrai, colapsa ou assume um perfil totalitário.

Ao longo dos anos que durou a ditadura angolana compreendi também que o que segura a civilização, enquanto a noite se expande, são os gestos simples de heróis comuns: aquele jardineiro arriscando a vida para regar as rosas; o sujeito que avança um passo e diz, “sou eu”, quando a polícia política entra no escritório onde trabalha, perguntando não por ele, mas por um amigo dele; a secretária que recusa os avanços do ministro; o soldado que se nega a torturar o prisioneiro; o radialista que insiste em difundir a canção proibida; o jovem estudante que permanece em silêncio e de braços cruzados, enquanto os colegas saúdam o ditador.

A coragem é muitas vezes invisível. Contudo, é a soma desses pequenos atos de bravura que assegura a sobrevivência da dignidade de todo um povo — ainda que a maioria jamais se manifeste.

“E agora?” — pergunta um jovem, numa charge que corre nas redes sociais.

— “Agora vamos fazer poesia.” —Responde a mulher: “Eles odeiam poesia.”

Gosto de pensar que sim, que ditadores e tiranófilos odeiam poesia. Ou melhor: que receiam a poesia, tanto quanto o sonho ou o humor. Porque a poesia, como o sonho ou o humor, é transgressora, irreverente e indomável.

Uma ocasião encontrei minha filha do meio estendida no assoalho da sala com duas amigas.

“O que estão a fazer?” —Perguntei. “Sonhamos.” —Respondeu-me a menina.

— “Sonhamos juntas.”

Pedi licença e juntei-me a elas.

Ao longo dos anos que durou a ditadura angolana compreendi que o que segura a civilização são os gestos simples de heróis comuns."

José Eduardo Agualusa 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

QUEM SOU

Se me perguntarem quem sou, talvez eu me demore na resposta. Não por não saber, mas porque carrego em mim tantas versões de mim mesmo. Sou o...