Todas as crianças se arriscam, caem,
se machucam ou sofrem pequenos acidentes; faz parte do crescimento e do
aprendizado, do amadurecimento neurológico e psíquico. Quem não tem aquela cicatriz de
infância para contar uma história?
Crescemos, tornamo-nos adultos e,
com o tempo, muitos de nós sofremos também algum tipo de acidente, uma ou mais
cirurgias, um corte na cozinha ou coisa semelhante. Alguns cortes são mais profundos,
outros, superficiais. Algumas feridas infeccionam, outras não. Uma pequena parte
delas, ainda, pode se cronificar, se não devidamente tratadas e cuidadas. Podem
demandar tratamentos mais agressivos e prolongados, não apenas com
antibióticos, mas até mesmo cirurgias, ou simplesmente se curar por si só. Tudo
depende do contexto, do organismo em questão, da contaminação no momento da
ferida etc. e tal.
Tive uma paciente que trazia a
pele morena e uma mancha mais clara bem no meio da perna. Aquilo para ela se
transformou em um problema gigante, quase insolúvel. Procurou dermatologistas e
cirurgiões, até que um deles lhe ofereceu um tratamento ‘gratuito’ para se
livrar daquela cicatriz - o resultado foi que sofreu alguns tipos de abusos por
parte do profissional e, por ser adolescente ou muito jovem, não me recordo
muito bem, não recorreu a ninguém e submeteu-se àquilo por diversas vezes, na
esperança de, por fim, livrar-se do seu ‘problema’. O que era para curá-la de uma
cicatriz superficial em sua pele transformou-se em uma cicatriz em sua alma,
muito mais profunda e difícil de ser tratada do que a primeira. Tornou-se uma
vítima real, impulsionada inicialmente pela própria neurose e necessidade de
corresponder aos padrões de beleza que havia se imposto.
Assisto a vários seriados de TV,
a maioria, policiais. Em um deles, uma policial foi sequestrada e deixada à
morte depois de ser tatuada com uma data em suas costelas – o que seria a data
de sua morte. A personagem, após ter sido salva e ao se deparar com aquela
imagem tatuada no espelho, sofria, revivia o trauma. Passado algum tempo, o
supervisor lhe diz que aquilo não era nada menos que uma prova de que havia
sobrevivido e que tudo dependia do olhar que ela colocasse sobre os fatos e
sobre sua ‘cicatriz’ – de que significado ela desse àquilo.
É aquela velha história do copo
meio cheio, ou meio vazio, dependendo da nossa interpretação.
Eu, da minha parte, já sofri ou
me submeti a várias cirurgias; cicatrizes, tenho várias. Além delas, tenho
grossas estrias vermelhas por todo o corpo, que escrevem uma história de
superação do uso prolongado de corticosteroides, entre outras coisas.
Confronto-me no espelho e posso escolher como encarar a situação. Confesso que
não é nada fácil, mas tudo não passa de uma escolha, sei bem disso.
Quanto às cicatrizes da alma, quem
não as tem? Sinal de que vivemos. E sobrevivemos. A um amor não correspondido, algum
tipo de abuso, psicológico ou não, uma história de maus tratos por um parente
ou amigo, relações conflituosas... As possibilidades são inesgotáveis.
Cicatrizes invisíveis aos olhos
materiais. Igualmente, no entanto, algumas são superficiais e se curam por si
só; outras, mais profundas, demandam atenção, cuidado e tratamento. Há que se
curarem ‘por dentro’, sob pena de infeccionarem, supurarem e se tornarem
crônicas. Traumas guardados no inconsciente ou não, que nos farão reagir de
forma inadequada e até insana a situações aparentemente inofensivas. Nestes, há
que se realizar uma verdadeira ‘cirurgia’, drenar a secreção, deixar tudo sair,
lavar por dentro, para depois fechar de novo e esperar cicatrizar, dessa vez de
uma forma correta. Sem rancores, raiva, vergonha, culpa, remorso...
Simplesmente uma história de superação a ser contada – ou não.
Pode-se recorrer a si mesmo; à escrita.
Pode-se recorrer à fala, dirigida a um amigo ou um profissional. O profissional
muitas vezes é imprescindível. Pode-se, e deve-se inclusive, recorrer ao que de
mais sagrado há em você – sua espiritualidade. O que não pode é deixar de
viver, deixar de se arriscar a voar, viver sofrendo, culpando o outro, se
culpando, se autossabotando... A vida é um sopro e estamos aqui para nos
curarmos do que quer que seja, para evoluirmos e também ajudarmos o próximo a se
curar e a construir significados diante de suas cicatrizes.
As cicatrizes são testemunhas e, ao mesmo tempo, provas. De que vivemos. Vivamos, então, dando graças a nossa
eterna capacidade de nos adaptar e de recomeçar a cada tropeço. Alcemos o voo. Se cairmos, pode ser que fique uma cicatriz a mais para contar a história. Viver é um risco que vale a pena!
Jean Paul Sartre já dizia: “Não
importa o que fizeram de mim, o que importa é o que eu faço com o que fizeram
de mim.” Ouso completar: importa, também, o que eu faço com o que eu mesmo fiz
de mim...
Viver é assim.
Paula Mendes
11/07/2021
👏👏👏👏uauuuu.... simplesmente fantástico minha 🌹❤
ResponderExcluirObrigada, amor!!
ResponderExcluirLindo demais o texto, amiga linda! Parabéns!! 👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼😍🌹
ResponderExcluirObrigada, minha linda!!
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