domingo, 11 de julho de 2021

Cicatrizes

 


 

Todas as crianças se arriscam, caem, se machucam ou sofrem pequenos acidentes; faz parte do crescimento e do aprendizado, do amadurecimento neurológico e psíquico. Quem não tem aquela cicatriz de infância para contar uma história?

Crescemos, tornamo-nos adultos e, com o tempo, muitos de nós sofremos também algum tipo de acidente, uma ou mais cirurgias, um corte na cozinha ou coisa semelhante. Alguns cortes são mais profundos, outros, superficiais. Algumas feridas infeccionam, outras não. Uma pequena parte delas, ainda, pode se cronificar, se não devidamente tratadas e cuidadas. Podem demandar tratamentos mais agressivos e prolongados, não apenas com antibióticos, mas até mesmo cirurgias, ou simplesmente se curar por si só. Tudo depende do contexto, do organismo em questão, da contaminação no momento da ferida etc. e tal.

Tive uma paciente que trazia a pele morena e uma mancha mais clara bem no meio da perna. Aquilo para ela se transformou em um problema gigante, quase insolúvel. Procurou dermatologistas e cirurgiões, até que um deles lhe ofereceu um tratamento ‘gratuito’ para se livrar daquela cicatriz - o resultado foi que sofreu alguns tipos de abusos por parte do profissional e, por ser adolescente ou muito jovem, não me recordo muito bem, não recorreu a ninguém e submeteu-se àquilo por diversas vezes, na esperança de, por fim, livrar-se do seu ‘problema’. O que era para curá-la de uma cicatriz superficial em sua pele transformou-se em uma cicatriz em sua alma, muito mais profunda e difícil de ser tratada do que a primeira. Tornou-se uma vítima real, impulsionada inicialmente pela própria neurose e necessidade de corresponder aos padrões de beleza que havia se imposto.

Assisto a vários seriados de TV, a maioria, policiais. Em um deles, uma policial foi sequestrada e deixada à morte depois de ser tatuada com uma data em suas costelas – o que seria a data de sua morte. A personagem, após ter sido salva e ao se deparar com aquela imagem tatuada no espelho, sofria, revivia o trauma. Passado algum tempo, o supervisor lhe diz que aquilo não era nada menos que uma prova de que havia sobrevivido e que tudo dependia do olhar que ela colocasse sobre os fatos e sobre sua ‘cicatriz’ – de que significado ela desse àquilo.

É aquela velha história do copo meio cheio, ou meio vazio, dependendo da nossa interpretação.

Eu, da minha parte, já sofri ou me submeti a várias cirurgias; cicatrizes, tenho várias. Além delas, tenho grossas estrias vermelhas por todo o corpo, que escrevem uma história de superação do uso prolongado de corticosteroides, entre outras coisas. Confronto-me no espelho e posso escolher como encarar a situação. Confesso que não é nada fácil, mas tudo não passa de uma escolha, sei bem disso.

Quanto às cicatrizes da alma, quem não as tem? Sinal de que vivemos. E sobrevivemos. A um amor não correspondido, algum tipo de abuso, psicológico ou não, uma história de maus tratos por um parente ou amigo, relações conflituosas... As possibilidades são inesgotáveis.

Cicatrizes invisíveis aos olhos materiais. Igualmente, no entanto, algumas são superficiais e se curam por si só; outras, mais profundas, demandam atenção, cuidado e tratamento. Há que se curarem ‘por dentro’, sob pena de infeccionarem, supurarem e se tornarem crônicas. Traumas guardados no inconsciente ou não, que nos farão reagir de forma inadequada e até insana a situações aparentemente inofensivas. Nestes, há que se realizar uma verdadeira ‘cirurgia’, drenar a secreção, deixar tudo sair, lavar por dentro, para depois fechar de novo e esperar cicatrizar, dessa vez de uma forma correta. Sem rancores, raiva, vergonha, culpa, remorso... Simplesmente uma história de superação a ser contada – ou não.

Pode-se recorrer a si mesmo; à escrita. Pode-se recorrer à fala, dirigida a um amigo ou um profissional. O profissional muitas vezes é imprescindível. Pode-se, e deve-se inclusive, recorrer ao que de mais sagrado há em você – sua espiritualidade. O que não pode é deixar de viver, deixar de se arriscar a voar, viver sofrendo, culpando o outro, se culpando, se autossabotando... A vida é um sopro e estamos aqui para nos curarmos do que quer que seja, para evoluirmos e também ajudarmos o próximo a se curar e a construir significados diante de suas cicatrizes.

As cicatrizes são testemunhas e, ao mesmo tempo, provas. De que vivemos. Vivamos, então, dando graças a nossa eterna capacidade de nos adaptar e de recomeçar a cada tropeço. Alcemos o voo. Se cairmos, pode ser que fique uma cicatriz a mais para contar a história. Viver é um risco que vale a pena!

Jean Paul Sartre já dizia: “Não importa o que fizeram de mim, o que importa é o que eu faço com o que fizeram de mim.” Ouso completar: importa, também, o que eu faço com o que eu mesmo fiz de mim...

Viver é assim.

 

Paula Mendes

11/07/2021

 

4 comentários:

Costurando a vida! – Fica-te tão bem o dia que trazes. Onde é que o arranjaste? – Fui eu que fiz. Já me aborreciam os dias sempre iguais, se...