domingo, 2 de janeiro de 2022

Os delírios verbais me terapeutam




Certa vez, quando eu passava por um momento muito difícil , sonhei que seria operado do coração. Angustiado, eu pensava que não sobreviveria à operação. 

Não sei como fui parar ali, por quais caminhos andei ou fui levado. Sabia apenas que haveria uma operação e eu era o paciente a ser operado. De repente, adentra a sala de cirurgia o cirurgião. Ao vê-lo, meu medo desaparece, cheguei até a  sorrir...Pois o médico que me operaria era nada mais nada menos do que o poeta Fernando Pessoa! 

No  princípio, achei estranho . Mas  depois percebi que fazia sentido ser um  poeta o cirurgião de um coração  angustiado.

 Sem demora, o cirurgião-poeta abriu meu peito, mas não com bisturi : não sangrou , nem houve dor. Ele enfiou uma das mãos, porém não foi suficiente. Somente as duas 
mãos do poeta conseguiram tirar meu coração do peito :

 "Ele está pesado como um paralelepípedo! Preciso extrair o que lhe pesa”, diagnosticou o cirurgião-poeta. “O que lhe pesa não é coisa física, o que lhe pesa é a mágoa com o passado, a decepção com o presente , o medo do futuro e a descrença nos homens”, disse-me ele enquanto extraía tudo isso.

 Quando olhei para a mão do poeta ,  meu coração estava minúsculo, parecendo uma semente salva de um fruto que perecia.  Protestei: “poeta, com esse coração pequenino não vou sobreviver!”

 O cirurgião-poeta então respondeu, terminando sua arte, sua “clínica”: “Ele está assim pequeno porque deixei apenas o coração da criança.” 

Após ouvir isso acordei, e não apenas daquele sonho,  já amanhecia . Queria registrar  o sonho e me virei para pegar caneta e papel. Então, algo que estava sobre meu peito caiu ao meu lado na cama, era um livro que adormeci lendo: “O Eu Profundo e os outros Eus”, de Fernando Pessoa.

Manoel de Barros

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